Desci na bicicleta os cerca de trezentos metros da rampa do Gingal com os travões a fundo não fosse eu chegar lá em baixo a rolar mais depressa que o velocípede. Como sou agnóstica (quando não se tem a certeza é melhor jogar pelo seguro) rezei para que não passasse nenhum carro que me fizesse encostar à berma da estrada.
É que, para mim, montar numa bicicleta num plano a descer é um caso muito sério. Montar numa bicicleta num plano a subir é um caso impossível. Não passou ninguém e das duas uma: ou a oração funcionou ou então, por serem sete horas da manhã de um sábado de um mês de Agosto toda a gente dormia e estava de férias.
Apanhei o barco para Belém e andei que me fartei por aqueles jardins verdejantes junto ao rio. O terreno a direito deu para fazer algumas habilidades à volta do mapa mundi que enfeita o chão em frente à caravela de pedra.
Uma turista oriental, entretida a conseguir o melhor enquadramento com a sua máquina digital recuava a passos largos em direcção à minha bicicleta e quase tropeçava no pneu da frente se eu não fizesse soar a campainha. Felizmente que percebeu o “trim” universal e eu escusei-me de enumerar uma série de marcas japonesas de telemóveis que conheço, única aquisição de tão estranha língua.
Certo dia vi num documentário televisivo a lógica morfológica dos símbolos chineses e certo dia depois disse numa aula que escrever chinês era fácil pelo que tive de repente cerca de vinte rostos na minha direcção curiosos por saberem o truque.
- Não, esperem, o que eu queria dizer é que escrever chinês não é assim tão difícil.
Os rostos logo se desviaram do meu com ar de desdém e, se de repente eu era o alvo das atenções, de repente também deixei de o ser. A rectificação frásica fez-me perder em segundos qualquer credibilidade poliglota.
Apanhei o barco para Cacilhas. Lembrei-me que a rampa a descer era agora a subir. E se às sete da manhã prevalecia a dimensão Metafísica, agora ao meio dia prevalecia a dimensão da Física. Parei junto ao elevador panorâmico. Hesitei. Como sou agnóstica (nunca se sabe) rezei para que o segurança me deixasse subir com a bicicleta.
- O senhor deixa-me subir no elevador com a bicicleta?
- Suba lá. – disse ele, sem retirar as mãos cruzadas atrás das costas.
Entre aquilo que é, e sei que é, e aquilo que poderá ser, e não sei se é, partindo da minha experiência, vou explicando a minha realidade, ultrapassando-a de modo a chegar a outras realidades que a transcendem numa busca de sentido.
De
António a 31 de Julho de 2008 às 21:36
Olá, Leonor!
Elucubrações curiosas a propósito de um passeio de bicicleta.
Lê-se com agrado, sobretudo porque usas bem o teu sentido de humor (como habitualmente, aliás).
Beijinhos
Assim como assim, a bicicleta sempre é mais segura que a motorizada, não é?
Muito bem escrito e escorreito.
Goste muito como sempre gosto quando as palavras me fazem sorrir.
Beijinho e bom fim de semana
Querida Leonor
E não ficaste gnóstica? Com dois pedidos em oração cumpridos? Pensa bem... :)
Um beijo
Daniel
Bem, embora não tivesse feito nenhum comentário, às tuas aventuras motorizadas tanto como pendura assim como condutora de uma scooter(ri-me até às lágrimas) faço agora em relação ao velocipede do qual sou adepto e conhecedor das rampas de almada até cacilhas, imaginei a cena toda principalmente o regresso, eu fazia o mesmo no Porto, pagava 50 centavos dos antigos escudos para vir da beira rio até cá acima nos elevadores da ponte da arrábida que aquilo, só de olhar para as ladeiras em paralelipipedo até apertava o coração! :) mas ainda consegui subir a pedalar uma ou duas vezes lá pelos meus idos 16 aninhos. Beijinho
Olá Leonor!..
O sentido existia, ou para cima ou para baixo, mas ambos a pedir orações...
Com um certo sentido de humor e muito bem escrito, vais relanto as tuas realidades na procura doutras realidades. Bjs
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