. Tenho rezado todos os dia...
Ontem, enquanto esperava pelo sono já deitada na minha cama, pensei numa introdução muito bonita para começar este post. Como não a apontei, esqueci-me. Bem me dizia o professor Carrola: Escreve. Escreve tudo porque a nossa memória é selectiva.
A nossa memória só lembra do que ela quer, e ainda por cima, algumas vezes ou a maior parte das vezes, lembra-se quando não queremos lembrar.
Quando me deparo com uma pessoa interessante, tenha ela a idade que tiver, colo-me a ela. Exploro-a no sentido de satisfazer a minha curiosidade intelectual, de lhe achar afinidades que joguem com as minhas numa procura de “ah, afinal ainda há gente que é do meu clube”.
Falava com a Maria, sei lá a propósito de quê, quando descobri que ela também lia e, obviamente, gostava de ler.
- Conheces Mário Bennedetti? – perguntou-me ela.
- Não.
- Tens que ler “A trégua”.
Ah! Já me lembro do que falávamos, eu e a Maria: de rotinas.
Ganhei o hábito de ler emprestado. Acho os livros caros. Mas não é por isso que eu não gosto de pagar por eles. Os meus amigos gostam de me emprestar livros. E eu habituei-me a não comprá-los. Quando mos emprestam é como se mos dessem e quando os olho arrumados nas prateleiras da minha estante lembro-me de cada um deles, consoante o livro em questão: a Fernanda, a Maria, a Isabel, o Gordo. É uma mania que implica a companhia presente quando ela não está ou não se faz, pela distância de ritmos diferentes impostos pela vida.
- Eu trago-te o livro. Tens de o ler. – disse-me ela.
Desconfiei do apelido do autor. Desconfiei da capa. Apenas o título me induziu a experimentar a visão da primeira página. O diário de um homem que está a pouco tempo da reforma, que tem um trabalho fastidioso onde os números imperam. A relação dele com os seus dias, com as pessoas que moram e trabalham com ele. Um diário simpático, melancólico, mas bem humorado, de alguém que desejaria outra coisa para si mas que não foi possível.
De alguma forma vejo-me nos defeitos e nas qualidades do narrador tal é o modo como ele escreve para chegar-se a mim.
A trégua, cessação temporária de um destino obscuro em que deus se dispõe dar um pouco de felicidade ao narrador para depois fazê-lo continuar num destino ainda mais obscuro que o anterior.
Quantas tréguas me deus este ano? Assim de repente… a memória falha.
Ofereceram-me neste natal uma agenda muito bonita rosa e amarela de um plástico macio e brilhante que apetece trincar. apontarei nela, desde o primeiro dia do ano, as suspensões temporárias de hostilidades, os instantes de alívio que eu mereço.
Leonoreta
Era outra vez Natal. Quando ela era pequena gostava do Natal. O Natal era-lhe sinónimo de prendas. A mãe colocava-as junto da árvore à medida que elas iam aparecendo lá
A mãe trocava-lhe as voltas mas o que ela queria era o soslaio do olhar, o passo em falso no sorriso.
- Dá-me uma prenda de Natal. Faz-me um desenho. – disse ele.
- Não é fácil fazer um desenho. Para mais, eu não sei desenhar. – disse ela.
Ela desenhava como as crianças. Todos os seus traços eram naif. Contudo, ela fê-lo.
Uma clareira no meio de uma floresta, um céu azul sem nuvens. Apenas três pássaros ao longe. Ele e ela de frente um para o outro, sentados no chão, na partilha de uma merenda.
Ele olhava o desenho.
- Não vais pendurá-lo por cima da mesa de cabeceira? – perguntou-lhe ela ironicamente.
- Nota que não te vou fazer uma crítica, apenas uma constatação. É sem duvida um espírito infantil o que preside ao desenho. Adoptaste o Universo das crianças porque constitui um espaço de fuga. "A arte da fuga" é uma constante nos artistas que só varia no modo e nas preferências. Imaginário infantil e até a própria arte de não dizer mas, sugerir, como acontece nos teus textos, faz me lembrar o Pessoa quando diz: "a arte é uma confissão de que a vida não basta". A ti não só não te basta como ainda por cima te aflige.
Ela ouvia-o de sobrolho franzido. Um dia quis experimentar saltar para a vida e para as pessoas numa transparência de fazer doer. Quando quis retroceder era tarde demais.
Ana estava deitada a todo o comprimento do sofá de barriga para cima e de perna traçada. Segura um livro com ambas as mãos à altura dos olhos. Num primeiro contacto com o livro fazia uma leitura na diagonal, demorando-se um pouco mais nos primeiros parágrafos deste ou daquele capítulo cujos títulos se mostravam mais sugestivos.
Leonor, alma inquieta, ziriquitava por ali querendo conversa.
- Estou a lembrar-me de uma parábola… aquela do mestre e do discípulo em que o discípulo não ata o cavalo e o cavalo foge… sabes qual é? – pergunta Leonor.
- Não. – responde a Ana, continuando a sua leitura.
- Sabes sim! … Aquela em que o discípulo deixa o cavalo sozinho e o mestre diz-lhe “tinhas que o ter atado”… esqueci-me… não sabes?
- Não.
- Eu sabia… agora já não me lembro muito bem, mas havia um mestre e um discípulo que tinha um cavalo que o deixou fugir porque não o atou durante a noite… bom, isto para concluir que…- as parábolas têm uma moral não é? - existem entidades superiores que te ajudam mas que só podem ajudar-te se fizeres metade do serviço porque lá na dimensão onde elas existem não podem fazer laços para o cavalo não fugir ou preencher o totoloto para ganhares o totoloto. Percebes?
Ana já sabia que muitas das perguntas da Leonor eram retóricas e por isso não respondeu. Ela tinha o costume de falar alto para arrumar ideias soltas. Era uma espécie de arrumar livros na estante pelas grossuras da lombada.
- … daí que o discípulo tinha que ter atado o cavalo para que deus não permitisse que ele fugisse. Já te lembras ? – continuou Leonor.
- Não. – Ana passava agora os olhos pelo índice remissivo.
Leonoreta
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