Nichita ingressou na turma há um mês.
Três dias antes chegou um fax à escola a informar que eu iria receber um menino moldavo.
Estamos no 3º período mas isso não interessa. Escola começa em qualquer dia.. Stephany é brasileira. Chegou no meio do 2º período e ela lá vai contente, apanhando os outros.
Falei com a turma. Vinha aí um colega novo. Estrangeiro. Tínhamos de ter todos muita amizade para dar e muitas palavras para ensinar.
De repente percebi que eu não sabia onde ficava a Moldávia. O Google mostrou-me onde era. A língua é o Romeno, uma das línguas latinas.
Como ensinar-lhe português? Como ensino inglês a um português. Mas quando o português não entende a língua estrangeira recorro à língua materna.
Quis um dicionário de romeno. Mais uma vez descobri-o na Internet. Com som e tudo.
Três dias depois o Nichita entra na sala acompanhado dos pais. O pai arranha português. A mãe fala comigo em francês, inglês e italiano. A minha veia portuguesa permite entender qualquer cidadão do mundo.
Começamos pelo i. Rapidamente avanço para o u. Descubro que ele percebe o ditongo: iu. Junto o p e ele lê piu.
Paro.
Escrevo pa, pe, pi, po, pu. Ele lê.
Junto pa com to. Ele lê.
Ai que maravilha! Ele sabe ler. Mas… não atribui significados ao que lê.
Nunca desenhei tanto na minha vida para ensinar conceitos como dentro, fora, sobe, desce…Por vezes ele encolhe os ombros. Não percebe. Contudo, nunca desistimos.
Sentei-o na carteira da frente perto de mim, ao lado da Stephany. Ela, nas suas dificuldades, ajuda-o.
Desenhei-lhe um rectângulo no caderno. Escrevi por baixo o nome dele e disse: desenha o Nichita. Stephany diz-lhe. É você. Desenha você.
Um dia, num dos meus intervalos passados na sala chego-me à janela para observar os miúdos que jogavam à bola. Alguns vêem-me e saúdam-me.
Nichita que brinca com eles diz-me adeus e ri-se. Está contente na escola.
O tempo é um grande mestre. É nosso amigo também.
Leonoreta
No 1º ano, ao mesmo tempo que dou uma letra nova, procuro no meu património cultural adquirido na escola primária o meu reportório musical a fim de arranjar uma canção que possa alegrar a aprendizagem dessa letra.
Não sei porquê mas os miúdos adoram a canção do galo. Pela cadência musical?
- Ok, vamos lá saber o que estas palavras querem dizer. – digo eu.
O nosso galo é bom cantor
É bom cantor
Tem boa voz
(O nosso galo é bom cantor porque tem boa voz.)
Mas veio um dia e não cantou
Outro e mais outro e não cantou
(o que é que aconteceu?
- Perdeu a voz. – diz um.
- Não quis mais cantar. – diz outro
O mais malandro, o David, sentado lá atrás passa o indicador esticado pela ao longo do pescoço em jeito de faca.
- Pois é. – digo eu - O dono matou-o e comeu-o. Esta canção é uma canção que fala de morte.
- iiiii, professora, morte não. – diz a Filipa, que anda no psicólogo desde os três anos de idade porque encontrou o avô morto no chão da sala.
- Filipa, eu também não gosto mas a morte faz parte da vida. As plantas, os animais nascem, vivem e morrem.
A Filipa conta o trágico acontecimento que a traumatizou. Momento difícil para uma miúda de seis anos que relembra aquele dia como se fosse ontem.
Cantamos a canção em vários andamentos. Mais depressa na primeira parte e em passadas lentas na segunda como se fossemos num funeral. Alguns só fazem de galo. Cantamos várias vezes.
Não creio ter banalizado a tristeza ou a dor de perder alguém mas apenas falar e pensar nela porque ela existe.
Leonoreta