Sexta-feira, 31 de Outubro de 2008
Quando ingressei na universidade, logo na primeira aula, uma das muitas professoras que iria ter durante os quatro anos que durou o curso, disse-nos, a mim e aos meus colegas: “Escolheram educação. Em educação as coisas mudam todos os dias.”
Pensei que a professora estivesse a exagerar. Afinal, passados alguns anos, constato que tinha razão.
E contudo o que muda exactamente em educação?
É a forma ou o conteúdo?
As duas coisas ou nenhuma delas?
Ah! Agora poderia dissertar sobre o assunto até não saber mais o que dizer. Mas não vou por aí.
As mudanças espalhafatosas lembram-me sempre uma história que passo a contar.
Com a finalidade de estreitar os laços entre duas empresas, sendo uma delas portuguesa e outra japonesa, foi decidido realizar-se anualmente uma prova de remo.
Na primeira competição, os japoneses destacaram-se desde o primeiro instante. Chegaram à meta em primeiro lugar. A equipa portuguesa chegou uma hora depois.
A direcção portuguesa reuniu-se para analisar os resultados de tão desastrosa derrota e concluiu que a equipa japonesa era composta por um chefe de equipa e dez remadores enquanto que na equipa portuguesa havia um remador e dez chefes de equipa.
No ano seguinte, a equipa japonesa destaca-se mais uma vez chegando em primeiro lugar à meta. Desta vez a equipa portuguesa chegou duas horas depois.
A direcção reúne novamente e constata que a equipa japonesa possui um chefe de equipe e dez remadores enquanto que a equipa portuguesa, com as medidas tomadas após o fracasso do ano transacto, era constituída por um chefe de serviço, dois acessores da gerência, sete chefes de secção e um remador.
Pelo que se concluiu por unanimidade que o remador era um incompetente.
Leonoreta
Sexta-feira, 17 de Outubro de 2008
Ensino as vogais, as consoantes, os ditongos, as unidades, as dezenas e as centenas, o “e vai um”, o corpo humano.
E penso… como é que eu aprendi isto tudo? Quero dizer… que método usou a minha professora para me ensinar essas coisas? Porque nessa altura ainda não se falava no lúdico. A didáctica era feita basicamente a reguadas. Estas não eram anti pedagógicas e quem as levou parece exibir uma espécie de orgulho por tê-las levado. Não ficou trauma.
Em quatro anos de escola primária levei uma reguada. Injustamente. Deixei cair um lápis a meio de uma explicação da professora.
A régua tinha usos muito abrangentes. Além de controlar comportamentos desviantes, de distinguir classes sociais, era também o “apoio educativo” e o “ensino especial”para dificuldades de aprendizagem.
Ainda bem que a régua desapareceu dos estabelecimentos escolares pelo seu uso indevido.
Contudo, verificando-se actualmente que houve um salto da indisciplina para a violência na escola, que afecta bastante a relação pedagógica, algo mais será preciso que o simples sermão porque ralhar não dói.
Sexta-feira, 13 de Junho de 2008
Quando eu me demoro a chegar à sala depois do intervalo há sempre alguém a vigiar a porta, uns metros mais à frente, para que os outros escrevam tudo o que quiserem no quadro e a professora não ver.
Depois, quando o vigia me vê a aproximar corre para que os colegas tenham tempo de apagar o quadro.
E desta vez a escolha recaiu no Nichita. Nichita já fala bem. Já diz “eu percebo”. Já diz “posso distribuir?” (os trabalhos feitos ao longo da semana que precisam de ser arrumados no dossier). Já diz “posso ir eu?” (quando eu peço um voluntário para ir ao quadro.
Mas Nichita distrai-se e quando me vê quase em cima dele tem um susto que não consegue disfarçar. Corre à minha frente a gritar “PROFESSORA, PROFESSORA”.
Não escrever no quadro na minha ausência é uma regra de sala de aula a fim de evitar conflitos pela posse do giz e do espaço da ardósia.
Antes de eu entrar na sala, entro na casa de banho e conto até trinta. Quando entro na sala, o quadro está limpo, está tudo sentado em silêncio.
Olho para o quadro. Olho para eles.
- Será que apaguei o quadro antes do intervalo? – pergunto “espantada” porque fica sempre matéria escrita.
Ninguém responde. Entreolham-se comprometidos à espera do que virá depois.
- Bom! Se calhar apaguei. Filipe começa a ler o texto.
E todos abrem o livro aliviados de uma possível punição.
No contexto de sala de aula não há receitas para controlar comportamentos indisciplinados mas uma coisa o tempo me ensinou: o castigo só os agrava.
Leonoreta
Sexta-feira, 23 de Maio de 2008
Nichita ingressou na turma há um mês.
Três dias antes chegou um fax à escola a informar que eu iria receber um menino moldavo.
Estamos no 3º período mas isso não interessa. Escola começa em qualquer dia.. Stephany é brasileira. Chegou no meio do 2º período e ela lá vai contente, apanhando os outros.
Falei com a turma. Vinha aí um colega novo. Estrangeiro. Tínhamos de ter todos muita amizade para dar e muitas palavras para ensinar.
De repente percebi que eu não sabia onde ficava a Moldávia. O Google mostrou-me onde era. A língua é o Romeno, uma das línguas latinas.
Como ensinar-lhe português? Como ensino inglês a um português. Mas quando o português não entende a língua estrangeira recorro à língua materna.
Quis um dicionário de romeno. Mais uma vez descobri-o na Internet. Com som e tudo.
Três dias depois o Nichita entra na sala acompanhado dos pais. O pai arranha português. A mãe fala comigo em francês, inglês e italiano. A minha veia portuguesa permite entender qualquer cidadão do mundo.
Começamos pelo i. Rapidamente avanço para o u. Descubro que ele percebe o ditongo: iu. Junto o p e ele lê piu.
Paro.
Escrevo pa, pe, pi, po, pu. Ele lê.
Junto pa com to. Ele lê.
Ai que maravilha! Ele sabe ler. Mas… não atribui significados ao que lê.
Nunca desenhei tanto na minha vida para ensinar conceitos como dentro, fora, sobe, desce…Por vezes ele encolhe os ombros. Não percebe. Contudo, nunca desistimos.
Sentei-o na carteira da frente perto de mim, ao lado da Stephany. Ela, nas suas dificuldades, ajuda-o.
Desenhei-lhe um rectângulo no caderno. Escrevi por baixo o nome dele e disse: desenha o Nichita. Stephany diz-lhe. É você. Desenha você.
Um dia, num dos meus intervalos passados na sala chego-me à janela para observar os miúdos que jogavam à bola. Alguns vêem-me e saúdam-me.
Nichita que brinca com eles diz-me adeus e ri-se. Está contente na escola.
O tempo é um grande mestre. É nosso amigo também.
Leonoreta
Sexta-feira, 9 de Maio de 2008
No 1º ano, ao mesmo tempo que dou uma letra nova, procuro no meu património cultural adquirido na escola primária o meu reportório musical a fim de arranjar uma canção que possa alegrar a aprendizagem dessa letra.
Não sei porquê mas os miúdos adoram a canção do galo. Pela cadência musical?
- Ok, vamos lá saber o que estas palavras querem dizer. – digo eu.
O nosso galo é bom cantor
É bom cantor
Tem boa voz
(O nosso galo é bom cantor porque tem boa voz.)
Mas veio um dia e não cantou
Outro e mais outro e não cantou
(o que é que aconteceu?
- Perdeu a voz. – diz um.
- Não quis mais cantar. – diz outro
O mais malandro, o David, sentado lá atrás passa o indicador esticado pela ao longo do pescoço em jeito de faca.
- Pois é. – digo eu - O dono matou-o e comeu-o. Esta canção é uma canção que fala de morte.
- iiiii, professora, morte não. – diz a Filipa, que anda no psicólogo desde os três anos de idade porque encontrou o avô morto no chão da sala.
- Filipa, eu também não gosto mas a morte faz parte da vida. As plantas, os animais nascem, vivem e morrem.
A Filipa conta o trágico acontecimento que a traumatizou. Momento difícil para uma miúda de seis anos que relembra aquele dia como se fosse ontem.
Cantamos a canção em vários andamentos. Mais depressa na primeira parte e em passadas lentas na segunda como se fossemos num funeral. Alguns só fazem de galo. Cantamos várias vezes.
Não creio ter banalizado a tristeza ou a dor de perder alguém mas apenas falar e pensar nela porque ela existe.
Leonoreta
Quinta-feira, 6 de Março de 2008
Quando escrevo TPC no quadro de ardósia preta anuncio também o fim da aula. Ou quase o fim da aula pois os últimos quinze minutos são dedicados ao desenho livre.
O desenho livre para os alunos do 1º ano do 1º ciclo é uma espécie de grito à liberdade. Não gostam de ter um tema e já descobri porquê: no desenho livre desenham o que sabem como sabem. No tema sugerido pela professora ocorre a frustração de não saber desenhar o que se pede tal como a coisa é. Dou uma ajuda no quadro, dizendo que não sei desenhar. É verdade. Eles animam-me: está giro. E copiam.
Em compensação, os alunos do 3º já não gostam muito do desenho livre. Será porque o conhecimento da escrita vai substituindo, aos poucos, a expressão iconográfica, a única possível quando não se sabe escrever?
Fazer desenho significa que começou a feira. Na hora dedicada à expressão plástica os alunos ficam mais descontraídos e trocam entre si impressões, algumas vezes acerca do trabalho que estão a fazer, mas outras vezes falam de assuntos de casa. Mesmo que a professora diga que se deve falar baixo, acaba sempre por se instalar alguma balbúrdia. Fazer desenho é também a altura de trocar afectos através do empréstimo de canetas e lápis. O cor de pele é o mais cobiçado. Apesar de todos possuírem canetas, as do vizinho são sempre mais bonitas e pintam sempre melhor.
Durante a elaboração de um desenho, o Francisco e a Maria, divertiam-se a juntar sílabas.
- Mala, mela, mila, mola mula. – disse a Maria
- Mila é o nome da minha mãe. – disse o Francisco. – Agora sou eu. Fala, fela, fila, fola, fula,
- Pata, peta, pita, pota, puta. – tomando consciencia do que disse a Maria põe a mão na boca aflita.
Eu escrevia os sumários mas estava a ver e a ouvir tudo. Fingi que não ouvi mas senti o olhar da Maria na minha direcção. Logo depois era ela que estava junto de mim com os olhos rasos de lágrimas.
- O que foi? – perguntei-lhe, continuando a escrever no Livro de Ponto.
- Professora… eu estava a brincar com o Francisco às sílabas e disse uma asneira sem querer.
- Que asneira? – desta vez olhei para ela.
E a Maria repetiu a asneira muito baixinho em que se percebia só o movimento dos lábios.
- Maria, foi sem querer. Estás a aprender a escrever as palavras. Ainda vais conhecer mais. Há palavras boas e más. Depois também aprendes a separá-las. Agora vai arrumar.
Leonoreta
Sexta-feira, 22 de Fevereiro de 2008
Há muito tempo que não escrevo sobre a escola. O motivo procuro agora para explicar a premissa anterior. A mudança brusca que se tem verificado no sistema de ensino apanhou integralmente o meu espírito às adaptações exigidas pelo ministério da educação a afastou-me daquilo que realmente gosto de fazer: dar a aula.
Deitei as preocupações do não saber fazer segundo a alínea do artigo tal do despacho não sei quantos que, decerto me atrasará no progresso da carreira e recomecei a dar a aula. A inventar novas maneiras de dar a conhecer o lobo mau e, à conta dele, do lobo mau, dou a letra B, faço revisões da letra L, no ditongo AU em português; agrupamos em dezenas as telhas que o lobo fez voar da casa de um dos porquinhos e verificamos que os pelos do lobo não são escamas nem são penas em estudo do meio.
Depois fazemos um desenho. Toca. Todos arrumamos as coisas. Mas não vamos para casa. Eu vou fazer super visão de actividades extra curriculares e eles vão para essas actividades. Ainda assim eu saio mais cedo do que eles. Depois de cinco horas de aulas, hora e meia de actividades, os miúdos ainda têm que estar no ATL. Ao todo, muitos passam onze horas na escola.
Às cinco e meia finjo que arrumo a escola na gaveta até ao dia seguinte. Sigo em direcção ao portão.
- Vais-te embora professora? – pergunta-me a Rafaela, uma miúda pequenina, linda de olhos verdes que fez seis anos em Novembro e que não quer aprender as letras pelos livros mas que não se importa de brincar com cartõezinhos quadrados coloridos onde . eu desenho sílabas para ela juntar.Ainda não percebeu que a enganei e que sem ela querer já aprendeu a ler.
- Vou Rafaela. Até amanhã.
Fecho o portão alto atrás de mim. Ela ainda me acompanha uns metros do lado de dentro das grades da escola. A escola parece uma prisão.
Leonoreta
Sexta-feira, 17 de Agosto de 2007
Nos primórdios da antropologia, alguns nomes conceituados da referida ciência, que não quero aqui revelar por várias razões, sendo uma delas a minha ignorância parcial sobre o assunto, escreviam sobre o conceito de cultura, dando como exemplo vivências de certos povos, sem nunca saírem do gabinete. Até que um dia, alguém se lembrou de abrir a janela do referido gabinete e ver que havia mundo lá fora, decidindo sair pela porta para escrever sobre os Papua da Nova Guiné. Hoje em dia sabemos mais sobre a vida dos Papua que propriamente quantas marcas de detergente para a louça há no supermercado.
Depois de um ano difícil em que trabalhei e ainda estudei, ainda me encontro, no mês de Agosto, a trabalhar numa proposta de dissertação que Bolonha estipulou para cinco páginas no mínimo com entrega em data marcada.
Copiando os primeiros antropólogos elaborei a proposta no meu gabinete e do meu gabinete eu fundamentei as larachas que quero impingir com alguns artigos de opinião pesquisados na Internet, onde vinha mencionada bibliografia. Depois ia desanuviar a cabeça para a praia.
Todavia, nunca encontrei a editora de Emilo ou da educação de Jean Jacques Rousseau.
À laia de Bolonha, mandei o meu trabalho por mail à minha orientadora que mandou logo um RE, dizendo: Levante-se da cadeira (não era bem assim que ela queria dizer) saia de casa e procure o livro nas bibliotecas ou em qualquer livraria.
Na Fnac não havia e na Bertrand nem constava nos catélogos on line.
- Quais são as probabilidades de haver um exemplar caido atrás da estante?- perguntei.
- Nenhumas. - responderam-me de forma tão peremptória que nem insisti.
No dia a seguir levantei-me cedo. O barco ia vazio, o metro ia vazio e tudo na universidade estava fechado menos a biblioteca e a tesouraria. Perguntei por Emílio à senhora do balcão e pela cota fui à procura dele. Encontrei-o em dois volumes magrinhos, já muito sarrabecos de folhas amarelo torrado. É provável que tenha sido um dos primeiros livros a povoarem as prateleiras daquela universidade.
Verifiquei que as lombadas tinham uma bola vermelha. Não podia levá-los portanto e esquecer-me deles na minha estante para fingir que os lia. Sei onde se coloca o chip que me denunciaria à saída se eu os enfiasse dentro da mala mas essa coisa chamada consciência, que nem Freud soube lá muito bem o que era, atrapalhou-me a acção. A reprografia estava de férias e só me restava comprar um cartão na tesouraria e meter as mãos à obra.
Por quatro vezes solicitei a ajuda preciosa (contrariada a partir do segundo chamamento) da senhora do balcão. A máquina não tinha folhas, a máquina reduzia-me as letras, a máquina copiava dos dois lados, debitando-me logo duas fotocopias de uma vez, a máquina tirava-me as fotocopias pretas. Aiiiiiiiiiiiiiiiii que nervos.
Gastei um cartão de cem fotocópias e a senhora do balcão nunca trabalhou tanto num dia de Agosto (em que toda a gente está de férias) como naquele dia.
Leonoreta