Quarta-feira, 19 de Março de 2008
Voltei a ler.
Isto é, voltei a ler coisas como ficções, daquelas que não são verdade mas que até podiam ser e, numa linha ou noutra, encontramos algo de semelhante com a nossa vida.
A Maria, a minha colega da sala ao lado emprestou-me “Tréguas” de Mário Benedetti. Gostei muito sim senhor. Aliás, já o tinha dito.
Mas agora a pausa à espanhola acabou-se e senti –me obrigada a voltar às pedagogias, ao aluno ideal, ao professor ideal, ao ensino ideal, ao ministro ideal, ao ordenado ideal.
Na segunda feira, entreguei o livro de Benedetti à Maria com algum pesar.
- Gostaste? – perguntou-me ela
- Sim. Muito.
- Vou arranjar-te outro. Ainda estás a precisar.
E no dia seguinte, a Maria entrou na minha sala, que está sempre de porta aberta a qualquer invasão, infantil ou adulta, e deu-me em mãos um novo livro, desta vez mais grosso que o anterior: a vida de PI de Yann Martel.
- Para ver se acreditas em Deus de uma vez por todas. – disse-me ela.
Será possível que o meu niihilismo seja assim tão evidente no meu olhar, no meu andar, nos meus gestos… porque de boca não digo nada. Ou se digo, não noto.
A vida de Pi.
Já passei as páginas de apresentação. As mais chatas de qualquer livro. Já entrei na acção. Estou a gostar. O herói é tão indefeso quanto eu. Não vou conseguir lê-lo até ao fim. A grossura da lombada mete respeito e as letras são pequenas. A Maria é professora contratada e vai-se embora daqui a pouco da escola. Fiquei com o mail dela mas sei que nunca mais vou vê-la. Ou então, se a encontrar vai ser por acaso.
Leonoreta
Sexta-feira, 28 de Setembro de 2007
Professora anos a fio de 3º anos, salvo uma excepção em que, na mesma turma de um 3º ano havia cinco elementos do 1º, vi-me este ano lectivo a braços com vinte miúdos prontinhos a começar a escola.
Embora as mesas sejam mais baixas e as cadeiras mais pequenas, as pernas de alguns ainda não chegam ao chão. Oh como é difícil escrever vogais direitinhas e do mesmo tamanho nas folhas de um caderno que teima em não se manter aberto tão diferente da folha branca A4 que não tem margens e linhas para obedecer.
Mais tarde, anos depois, no fim da escola primária, a parte do caderno que teimava em fechar é presa de forma insolente com o cotovelo enquanto a mão segura a cabeça que já conhece a forma das letras de cor.
Muitos não frequentaram o jardim de infância, que sorte a deles ainda terem avós, e, passando tantas horas na escola, pensam que são votados ao abandono. O Bruno, mal entrou na sala, no primeiro dia chorava que nem um perdido. Tive de me colocar de cócoras para que os meus olhos ficassem à altura dos dele.
- Quero a mãe, dizia ele.
- Oh Bruno! A mãe não pode vir agora, está a trabalhar. - E contei-lhe a história de um patrão malvado que despedia a mãe se ela fosse lá buscá-lo. Os outros ouviam atentos. Tudo o que seja história é bem vindo.
E o Bruno sentou-se. E trabalhou.
No dia seguinte houve novo choro. Perante o “quero a mãe” repeti a história do patrão malvado. Todavia, devo ter-me esquecido de algum ingrediente mágico porque o Bruno, pouco convencido da maldade do patrão da mãe, veio várias vezes ao pé de mim repetir o pedido: “quero a mãe”.
Sentei-o e perguntei à turma se sabia o que era uma varinha de condão. Lembrei-me do Duarte, quando estive em Chelas: “Uma varinha de condão serve para fazer nascer coisas” disse ele.
- Eu vou arranjar uma varinha de condão e quando o Bruno quiser a mãe, eu “PIM” e a mãe aparece. A turma ria e o Bruno também.
De manhã traz a bola na mão e os livros na mochila. À tarde, mete a bola na mochila e vem-me dizer que os livros não cabem. Arrumamos os livros na mochila e colocamos a bola num saco de plástico. Ainda chora pela mãe e eu pego na varinha, colher de pau forrada com papel metalizado dourado e estrela na ponta e tento várias vezes a magia, revelando humildemente a minha falta de jeito para ser fada.
- Tu queres ver que são as pilhas Bruno!
Ele ri-se e pára de chorar. Mas é na cumplicidade de arrumar a mochila e ter sacos de plástico de reserva para ele guardar a bola que eu vou conseguindo que ele vá gostando de estar na escola. E de mim.
Leonoreta